CLÁSSICO DA HISTORIOGRAFIA RESGATA VESTÍGIOS DE UM BRASIL FRANCÊS
Em 1576, o português Pero Magalhães Gândavo lamentava, na introdução do seu "História da Província de Santa Cruz", que os portugueses pouco ou nada sabiam sobre o dito Brasil e que os estrangeiros tinham "a terra noutra estima" e conheciam suas particularidades "melhor e mais de raiz". Gândavo tinha razões de sobra para inquietar-se, pois, realmente, outros povos europeus pareciam estar, naqueles tempos, mais informados sobre as terras recém-descobertas do que os próprios descobridores lusitanos.
Uma prova contundente e bastante singular de tal intimidade viera da França, quase três décadas antes da advertência de Gândavo.
Em outubro de 1550, os homens de negócio de uma companhia de comércio denominada "França Atlântica" organizaram, na cidade de Rouen, uma grande "festa brasílica" para receber o rei Henrique 2º e sua esposa Catarina de Médicis. Determinados a despertar nos monarcas o interesse pela América do Sul, esses ricos comerciantes e armadores excederam-se e, não contentes em exibir uma portentosa decoração vinda do Novo Mundo para "abrilhantar a entrada", importaram dos trópicos -com os quais estavam muitíssimo familiarizados- cerca de cinco dezenas de tupinambás, a fim de recriar uma tribo indígena às beiras do rio Sena.
Repercussão
Os impactos de tão exótico festim logo se fizeram sentir. O mais saliente deles é bem conhecido dos brasileiros e atende pelo nome de "França Antártica" (1555-1567), a naufragada tentativa francesa de estabelecer um núcleo colonizador na baía de Guanabara.
Malgrado, no entanto, o seu sucesso, a "festa brasílica" de Rouen cedo caiu no esquecimento e talvez de lá não tivesse saído sem o empenho de um renomado estudioso do Brasil, Ferdinand Denis.
Em 1850, três séculos depois da "entrada", esse francês, a quem tanto deve a cultura luso-brasileira, publicou um pequeno livro, intitulado "Uma Festa Brasileira em Rouen", no qual comenta o curioso episódio a partir de um documento Quinhentista (1551) que encontrara na Biblioteca Nacional de Paris. Essa descrição comentada de Denis, com muitas notas e referências bibliográficas do aplicado brasilianista, estava há muito desaparecida das livrarias brasileiras -a última edição em português é de 1944-, mas por sorte acaba de voltar ao mercado, numa edição bilíngüe, mais completa do que a anterior, prefaciada e anotada por Eduardo de Almeida Navarro. É verdade que, lamentavelmente, o pequeno livro de Denis não reproduz o documento quinhentista que comenta -uma descrição da "entrada" de Rouen, legada por um espectador (cópia digitalizada deste documento pode ser encontrada no site gallica.bnf.fr).
É verdade, também, que muitas das suas referências bibliográficas contêm pequenos erros e que não são poucos os problemas abordados pelo historiador que já foram resolvidos pela historiografia posterior -como a passagem referente a Caramuru- ou que simplesmente deixaram de ser relevantes.
Apesar desses e de outros efeitos do tempo, o estudo de Denis não perdeu o interesse e o sabor para o leitor contemporâneo -especialista ou não. Ao contrário, escrito em uma linguagem clara e atraente, repleto de informações e indicações bibliográficas quase esquecidas pelos historiadores e dedicado a um dos episódios mais inusitados da expansão marítima, "Uma Festa Brasileira..." pode hoje ser considerado um pequeno clássico da historiografia dedicada ao Brasil quinhentista.
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), e autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), e autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).
UMA FESTA BRASILEIRA - CELEBRADA EM ROUEN EM 1550
Autor: Ferdinand Denis
Tradução: Eduardo de Almeida Navarro e Júnia Guimarães
Botelho Editora: Bazar das Palavras/Usina de Idéias
Quanto: R$ 55 (236 págs.)
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
Folha de São Paulo
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