ENTRESSEIO

s.m. 1-vão, cavidade, depressão. 2-espaço ou intervalo entre duas elevações. HUMOR, CURIOSIDADES, UTILIDADES, INUTILIDADES, NOTÍCIAS SOBRE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DE BENS CULTURAIS, AQUELA NOTÍCIA QUE INTERESSA A VOCÊ E NÃO ESTÁ NO JORNAL QUE VOCÊ COSTUMA LER, E NEM DÁ NA GLOBO. E PRINCIPALMENTE UM CHUTE NOS FUNDILHOS DE NOSSOS POLÍTICOS SAFADOS, SEMPRE QUE MERECEREM (E ESTÃO SEMPRE MERECENDO)

02 fevereiro, 2010

ATUALIDADES - 2-2-10

Virando o disco
Fechada (e quase sucateada) em 2007, quando já era a única fábrica de vinis da América Latina, a Polysom volta à ativa com novo dono e a mão de obra de profissionais que viveram a ascensão e a queda das bolachas, formato que está em alta de novo.
Em 1998, quando a última grande gravadora brasileira encerrou a produção de discos de vinil, sobraram pouquíssimas fábricas, todas de fundo de quintal. Com o crescimento desenfreado do CD (que hoje, quem diria, é o condenado à morte da vez), elas foram perdendo fôlego e acabaram na bancarrota. A última a fechar as portas foi a Polysom, em Belford Roxo, que deixou de operar em outubro de 2007, após carregar durante anos o título de "única fábrica de vinis da América Latina". Mas enquanto o mato crescia pelo terreno de 1.900 metros quadrados na Baixada, o vinil voltava a virar objeto de desejo entre apreciadores de música e colecionadores — basta dizer que, só nos Estados Unidos, as vendas em 2009 chegaram a 2,5 milhões de unidades. E João Augusto, dono da gravadora independente Deckdisc, se interessou em tocar o negócio.
Depois de um ano de ajustes, a Polysom foi parar justamente nas mãos do sujeito que decretara o fim da produção em vinil dos tí­tulos da EMI, em 1995, quan­do era vice-presidente da mul­tinacional.
Esta semana, o em­presário bota na rua os quatro primeiros discos da nova for­nada — "Onde brilham os olhos seus", de Fernanda Ta­kai; "Fome de tudo", da Nação Zumbi; "Cinema", do Cachor­ro Grande; e "Chiaroscuro", de Pitty, todos relançamentos da Deckdisc —, e não esconde o orgulho ao mostrar as crias da empreitada.
— Olha a estrutura do disco, tem peso, qualidade. Não está bonito? — pergunta, sabendo que qualquer resposta diferen­te de sim seria como tirar um doce da boca de uma criança.
Para que tudo isso funcio­nasse de forma competitiva, João investiu em mão de obra especializada — e foi buscar o que havia de melhor num mercado há muito desaque­cido. Primeiro, contratou dois dos mais capacitados profis­sionais da área: o operador de caldeira José Rosa, de 60 anos, e o torneiro mecânico Nilton Rocha, de 62 anos. Ex-sócios da Polysom, que abri­ram em 1999, com máquinas compradas de antigas fábri­cas de grandes gravadoras, não havia ninguém mais in­dicado para tocar o negócio. Para completar a tropa de elite, foi recrutado o mecâ­nico Sérgio Mortoni, de 53 anos, que estava aposentado. Juntos, os três somam mais de um século de experiência na indústria fonográfica, com passagens pelas fábricas de vinil das gravadoras mais im­portantes do país, como as extintas Polygram e CBS. O que seria um problema na hora de conseguir um lugar no mercado pesou a favor na hora da escolha.
— Aqui só tem coisa velha. As máquinas (dos anos 64 eu, seu Nilton, o José, o Sér­gio — brinca João Augusto, que tem 53 anos.
Das mãos desses raros guardiões da arte de fazer vi­nil, a fábrica, aos poucos, vol­tou a existir. Hoje, os mais antigos servem de exemplo para os outros seis funcio­nários no prédio que tem ca­pacidade para produzir até 28 mil LPs e 14 mil compactos por mês. Das oito prensas res­tantes — as outras foram su­cateadas e vendidas por R$ 0,10, o quilo —, três voltaram a funcionar depois de passar seis meses sendo reconstruí­das. Um trabalho artesanal que só foi possível devido ao domínio das técnicas pelo grupo, e que exigiu paciência e muita criatividade, já que muitas peças do equipamento antigo não existem mais. Toda a reforma das máquinas foi feita à mão, sendo que alguns apetrechos precisaram ser criados ou adaptados pelos "rapazes".
— O que existia a gente restaurou. O que estava fal­tando, a gente teve que dar um jeito — diz Nilton, um Pro­fessor Pardal nato, que passa horas criando engenhocas em seu torno mecânico. — Aqui eu nem sinto o tempo passar, volta e meia esqueço a hora do almoço. Quando a gente faz o que gosta é assim.
A empolgação de Nilton é a mesma de quando ele entrou pela primeira vez numa fábrica de discos, em 1969, depois de se candidatar, aleatoriamente, a um emprego no setor. Foi a paixão desenvolvida ao longo da carreira que fez com que ele ,já com o mercado de vinis em decadência, arrematasse com o colega José Rosa o que res­tava de equipamento para montar a Polysom.
— Fui teimoso, estava na contramão do mundo, mas nunca deixei de acreditar no vinil — recorda Nilton, orgu­lhoso da volta por cima. — Quando voltamos a produzir, foi uma alegria só.
Enquanto esteve sob o co­mando de Nilton e José, a Po­lysom sobreviveu de música eletrônica, gospel, evangélica e rock alternativo. Quando per­guntado sobre o disco que mais se orgulha de ter produzido, Nilton é sincero:
— Quando estou trabalhando não me prendo muito nisso, não. Meu negócio são as
máquinas, é desenvolver o pro­cesso — diz ele, apesar de ser apaixonado por orquestras e ouvir música sempre que chega em casa do trabalho. — Não tem coisa melhor do que sentar, botar um disco na vitrola e se deleitar. Eu até tenho CDs e DVDs, mas o som é outro.
Com os óculos para a vista cansada pendurados no pes­coço, José explica, em poucas palavras, a sua função:
— Aqui o meu negócio é fazer vapor.
No mercado desde 1970, José sempre trabalhou com manu­tenção de caldeiras — peça que fornece vapor às prensas de onde saem os discos.
A maior parte do tempo ele passou den­tro de grandes fábricas como a Ponobras e a CBS. Mas a sua relação com os discos de vinil também não é apenas profis­sional. Apaixonado por música sertaneja de raiz, ele tem uma coleção de clássicos: Tonico e Tinoco, Milionário e Zé Rico, Zico e Zeca... São mais de 600 exemplares. CDs ele tem tam­bém, mas poucos.
— O som do CD é muito estridente, acho enjoativo — reclama.
Do trio de experts na coisa, o único que não acreditava na volta do vinil era Sérgio — tanto que se desfez da maior parte de sua coleção, restando apenas alguns poucos discos de 12 polegadas, e nos dez últimos anos de atividade se rendeu à produção de CDs.
Quando se aposentou, o especialista em manutenção e mecânica trocou o Rio por São José dos Campos, em São Paulo, onde vivia entre um trabalho temporário e ou­tro, sem sequer imaginar que um dia voltaria a trabalhar com bolachas.
— Foi uma surpresa. Estava em casa, tomando café da ma­nhã com a minha mulher, quando me ligaram com a pro­posta de ressuscitar a Polysom — lembra. — Mas eu vou ser sincero: quando eu che­guei aqui e vi o que tinha, foi de assustar. Era muita sujeira. Cheguei a me questionar: "Se­rá que isso vai dar certo?"
Hoje o cenário é completa­mente diferente. Não há mais mato crescendo e as máquinas estão funcionando — com ex­ceção de uma caldeira de 1977 que precisou ser substituída por outra um pouco mais no mas continua lá como pec fundamental. As paredes e alguns equipamentos foram pintados de um verde carinhosamente apelidado de "verde-Polygram", já que tem um tom parecido com o da fábrica coordenada por João Augusto décadas atrás, e ganharam detalhes em vermelho. Em novembro, começaram efetivamente os testes de fabricação de vinis, e acabaram-se as dúvidas: sim, a Polysom esta novamente na área.
— Todos os testes que fizemos aqui, fizemos também fábrica americana Bill Smith Inc. — conta João Augusto. — os resultados foram os mesmos. Ou seja: estamos produzindo de igual para igual.
No Brasil, a Associação Bra­sileira dos Produtores de Dis­cos não tem dados estatís­ticos representativos da pro­dução de vinil desde 1997. As últimas pesquisas america­nas, no entanto, mostram que de 2008 para 2009 houve um aumento de 33% no comércio de bolachas. De acordo com a The Nielsen Company, os ar­tistas internacionais que mais venderam discos de vinil nos Estados Unidos em 2009 fo­ram Radiohead (45.700), The Beatles (38.800), Michael Ja­ckson (30.400), Metallica (30.200) e Wilco (29.600).
— Quando se trata de in­dústria fonográfica, podemos calcular a fatia brasileira como sendo equivalente a 10% do mercado americano — si­tua João Augusto.
— Sabe que recentemente saiu uma pes­quisa dizendo que 47% das pessoas que compram vinis nem têm toca-discos?
Ele conta com esse fetiche para garantir o sucesso do negócio. Sem incentivos fis­cais — 70% do preço do disco são destinados a impostos —, os LPs não devem chegar às lojas por menos de R$ 70. Mesmo com o valor bastante salgado para o mercado bra­sileiro, mais de cem selos e gravadoras já demonstraram interesse nos serviços da no­va Polysom.
Segundo João Au­gusto, estão em negociação o lançamento em vinil do disco "Rock'n'Roll", de Erasmo Car­los (pelo selo Coqueiro Ver­de), e de todos os álbuns da Legião Urbana (pela EMI).
— Quando disse que não faríamos mais LPs, o Renato (Russo) fez um carão e exigiu que os discos da Legião con­tinuassem a sair também em vinil — lembra João.
— Ago­ra todo o relançamento do catálogo deles em vinil será feito aqui.

Marcella Sobral

Revista O Globo

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