UM MERGULHO NO CORAÇÃO DAS PRISÕES SECRETAS DA CIA
O que aconteceu de fato nas prisões secretas da CIA onde foram encarcerados inúmeros suspeitos de terrorismo depois dos atentados de 11 de setembro?
Em sua edição de 13 de agosto, a revista americana "New Yorker" propõe um mergulho nesses locais secretos onde, apesar das negativas oficiais, a tortura parece ter sido praticada em grande escala e de maneira sistemática. A jornalista Jane Mayer baseia a sua investigação num relatório confidencial do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), o qual teve acesso aos depoimentos de quinze suspeitos que estão detidos em Guantánamo. O relatório do CICV é confidencial, uma vez que a organização considera a discrição necessária para poder dar prosseguimento ao trabalho. As suas conclusões não permitem qualquer contestação. Os responsáveis americanos envolvidos no programa da CIA cometeram "crimes sérios", que constituem uma violação da Convenção de Genebra e da legislação americana, segundo uma fonte do CICV. A tal ponto que muitos agentes da CIA estariam preocupados e buscariam de antemão cercar-se de proteções no plano judiciário. Interrogadores formados nas técnicas do KGBA gênese do programa das prisões secretas remonta, segundo a jornalista, ao dia 17 de setembro de 2001, data na qual o presidente Bush autorizou a formação de unidades paramilitares encarregadas de capturar ou de matar alvos designados como terroristas no mundo inteiro.
Naquela época, a CIA carecia de agentes aguerridos no campo dos interrogatórios. Diante disso, oficiais começaram a analisar minuciosamente os arquivos da agência, até encontrarem elementos do plano Phoenix, que fora utilizado pelo exército americano no Vietnã entre 1970 e 1971, e que se tornou uma fonte de inspiração para a agência. Os responsáveis da inteligência também se voltaram para os seus aliados mais experientes na luta antiterrorista, pedindo mais particularmente conselhos para o Egito, a Jordânia e a Arábia Saudita, ou seja, países que costumavam ser acusados com freqüência pelo Departamento de Estado pelas suas políticas falhas em matéria de direitos humanos.
Quando os primeiros suspeitos foram capturados, a CIA não estava pronta. Diante disso, os seus chefes recorreram então a "terceirizados" que não pertenciam à agência, cujos métodos foram descritos por especialistas do mundo da inteligência como "parecidos com aqueles do filme 'Laranja Mecânica' [de Stanley Kubrick]", relata Jane Mayer.
Aqueles homens, quase todos antigos psicólogos militares, nunca haviam praticado a tortura, mas haviam ensinado aos soldados como resistir a ela. Sob o comando americano, eles treinaram vários exercícios como a simulação de afogamento, a privação de sono, o isolamento, a exposição a temperaturas extremas, a exposição a barulhos ensurdecedores, as humilhações sexuais e religiosas. O paquistanês Abu Zoubaydah, capturado em março de 2002, foi submetido, segundo relata Jane Mayer, a simulações de afogamento e foi também confinado dentro de uma gaiola - "a casinha para bichos" - tão pequena que ele nem sequer podia se levantar. Esses especialistas diplomados aplicavam um esquema de tortura calcado nos métodos do KGB.
O objetivo final do processo era transmitir aos detentos a certeza de que mais nada, nem ninguém, poderia salvá-los daqui para frente. Este objetivo era alcançado, entre outros, destruindo a capacidade do suspeito de prever o futuro - quando será a sua próxima refeição, quando ele poderá ir ao toalete - e retirando dele da forma a mais arrasadora possível toda percepção sensorial - confinando-o, por exemplo, numa sala sem cheiro, sem luz, sem som. "O KGB utilizava esses métodos contra indivíduos que haviam se rebelado contra o Estado e para arrancar deles confissões inventadas. O KGB não estava em busca de informações", comentou, contrariado, em entrevista ao "New Yorker", Steve Kleinman, um coronel da reserva que se opõe ao programa secreto da CIA. "Retirar toda dignidade do detento"Ao longo dos meses, os métodos se tornaram mais afinados, explica Jane Mayer. Cada uma das etapas para destruir um homem estava prevista, codificada. A tal ponto que antes de cada nova tortura, "você já sabe o que cada detento irá dizer, porque outros já o disseram antes dele", comenta um especialista externo da CIA, que tinha conhecimento do protocolo utilizado.
Tais fatos motivam a jornalista a acrescentar que não há nenhuma comparação possível entre o programa da CIA e os abusos - sancionados - de Guantánamo ou Abu Ghraib, que foram cometidos por agentes mal treinados ou desequilibrados.
Cada transferência, cada interrogatório foram objetos de várias autorizações e de relatórios detalhados que remontaram até o mais alto nível hierárquico. As torturas praticadas pelos agentes da CIA teriam motivado um detento iemenita a tentar suicidar-se em três oportunidades. Durante semanas, e até mesmo meses, barulhos ensurdecedores eram difundidos dentro da sua cela, desde música até risadas amedrontadoras extraídas de filmes de terror. Essas pressões psicológicas, segundo a opinião de detentos interrogados, eram mais difíceis de suportar do que os abusos físicos. Um outro caso citado pela jornalista é aquele de Khalid Cheikh Mohammed, considerado como o principal arquiteto dos atentados de 11 de setembro de 2001. Depois da sua captura, em março de 2003, Mohammed é transferido para uma prisão secreta em território polonês. Ele sofreu então incontáveis humilhações. Mantido nu durante sete dias, ele teria sido interrogado por uma quantidade incomum de agentes mulheres, antes de ser suspenso pelos braços no teto da sua cela, enquanto ele mal conseguia tocar o chão com a ponta dos pés. O testemunho de Khalid Cheikh Mohammed permite também clarificar uma série de outros aspectos. Durante a sua detenção, ele afirma ter visto uma garrafa de água mineral que trazia inscrições em polonês, o que viria a corroborar as acusações do Conselho da Europa, que estima que Varsóvia permitiu a implantação no seu território de locais de detenção destinados a abrigar as atividades da CIA. Para alcançar quais resultados será que foi implantado este dispositivo complexo, secreto, que suscitou um bom número de debates no âmbito da administração americana? O general Michael Hayden, diretor da CIA, afirmou em várias oportunidades que o programa das prisões secretas era "insubstituível". Quanto ao presidente Bush, ele estima que o trabalho que foi realizado pela CIA permitiu que "vidas fossem salvas, impedindo novos ataques". Contudo, o exemplo de Khalid Cheikh Mohammed, que foi submetido a várias das torturas previstas pela CIA e que conheceu as prisões da agência nos territórios afegão, polonês e cubano (Guantánamo), é perturbador. No total, Mohammed endossou a responsabilidade de 31 complôs terroristas, número este que os especialistas consideram como "improvável", até mesmo para um terrorista de alta patente. Dentre os crimes dos quais ele atribuiu a si mesmo a paternidade, além dos atentados de 11 de setembro, estão listados projetos de atentados contra Bill Clinton, Jimmy Carter ou o papa João Paulo 2º. E também consta da lista o assassinato do jornalista americano Daniel Pearl, em 2002, no Paquistão. A versão dos fatos tal como foi confessada por Khalid Cheikh Mohammed é refutada pelos parentes e colegas de Pearl. O seu pai, Judea, resume a opinião da família: "De qualquer forma, Mohammed pode afirmar até mesmo que ele matou Jesus, pois ele nada tem a perder". A tortura, em última instância, não parece conduzir à verdade.
Segundo Jane Mayer, o programa dos "black sites" (locais ocultos) da CIA foi mesmo abandonado em setembro/outubro de 2006, depois dos anúncios feitos por George W. Bush, e da transferência dos últimos detentos das prisões secretas para Guantánamo. Mas a Casa Branca se recusa até hoje a desautorizar os "interrogatórios melhorados", ainda que eles sejam ilegais no território dos Estados Unidos. O que significa, segundo a jornalista, que as agências de inteligência americanas podem continuar detendo indefinidamente suspeitos em locais secretos, sem nenhuma base jurídica.
Benoît Vitkine - LE MONDE
Tradução: Jean-Yves de Neufville
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