ENTRESSEIO

s.m. 1-vão, cavidade, depressão. 2-espaço ou intervalo entre duas elevações. HUMOR, CURIOSIDADES, UTILIDADES, INUTILIDADES, NOTÍCIAS SOBRE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DE BENS CULTURAIS, AQUELA NOTÍCIA QUE INTERESSA A VOCÊ E NÃO ESTÁ NO JORNAL QUE VOCÊ COSTUMA LER, E NEM DÁ NA GLOBO. E PRINCIPALMENTE UM CHUTE NOS FUNDILHOS DE NOSSOS POLÍTICOS SAFADOS, SEMPRE QUE MERECEREM (E ESTÃO SEMPRE MERECENDO)

30 maio, 2007

CULTURA POR METRO

Livros são vendidos nos Jardins, em São Paulo, não para serem lidos, mas para combinar com a decoração do ambiente.
Será que a coleção de literatura francesa vai combinar com o sofá? A dúvida não causa estranhamento ao livreiro Aristóteles Alencar, dono do sebo O Belo Artístico, nos Jardins paulistanos. Além de vender obras raras, que podem custar o preço de uma casa popular, a loja abriga uma seção dedicada ao comércio de livros por metro. Pouco importa o conteúdo das páginas, desde que a encadernação seja bonita o suficiente para preencher espaço na estante. Os compradores são, geralmente, decoradores. Também é grande a demanda de médicos e advogados, interessados em ornamentar o escritório com uma portentosa biblioteca capaz de impressionar os clientes.
Alencar considera a venda desse material uma atividade menor, que representa menos de 10% do faturamento. Nem por isso menospreza os clientes que olham para um livro e enxergam um bibelô. “Muitos autores saem de moda, mas servem para leitura. É melhor preservá-los na estante do que depositá-los na lixeira.” Entretanto, as obras disponíveis não são necessariamente de escritores vencidos pelo tempo. Há luxuosas coleções com clássicos estrangeiros, de Voltaire a Shakespeare. Também existe uma infinidade de livros técnicos completamente obsoletos. Difícil imaginar, por exemplo, que os conceitos do livro Anomalias Sexuais, de 1933, possam ser aproveitados por um médico nos dias de hoje.
Um metro reúne cerca de 30 exemplares de livros, e custa de 300 a 1.500 reais na loja. A variação de preço é calculada por uma lógica intrincada. Os artigos com lombada em couro e capa dura valem mais. Quando o cliente exige uma coleção de literatura ou obras de um tema específico, paga um adicional. Se optar pelos idiomas mais procurados (português, inglês e francês), volta a colocar a mão no bolso. É por isso que o “metro inteligente”, como costuma classificar o livreiro Alencar, não sai por menos de 800 reais. Quem não se importa com o conteúdo pode levar uma coleção incompleta de revistas encadernadas, da década de 1970, pela metade do valor. Eis o “metro burro”, a opção de metade da freguesia.
Quem atende os clientes é a vendedora Maristela Almeida, 34 anos. Com a fita métrica nas mãos, ela acompanha o comprador até a estante e o assessora na escolha. Nem sempre a conta se resume em multiplicar a metragem pelo preço do produto. “Muitos pedem um pouquinho de cada cor, misturam livros de valores diferentes.” Além disso, faz promoções especiais para quem adquire quantidades maiores. “O cliente sempre chora, pede para abaixar o preço. Se compra mais de dois metros, ganha 10% de desconto.”
A livraria também coleciona histórias que dariam um anedotário, como a da madame que entrou na loja desesperada à procura de “livros de verdade”. Não era uma metáfora. A distinta senhora completou a estante de casa com imitações de livro, feitas de madeira compensada. Durante uma festa, uma amiga quis folhear as páginas de uma das obras. Ao puxar o falso exemplar, caiu o bloco de madeira no chão. Constrangida, a anfitriã resistiu aos risos dos convidados e partiu, no dia seguinte, à caça de livros convencionais, desses que costumam ter algo escrito sobre papel. “Ela levou alguns metros de literatura, mas só para decoração mesmo”, conta Alencar.
Preocupado com a imagem da loja, citada em guias de endereços curiosos, o livreiro faz questão de dizer que não comercializa apenas livros decorativos. Mostra as raridades do estoque, como uma edição especial de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, impressa em 1929, com ilustrações do artista italiano Amos Nattini. Os dois gigantescos volumes pesam cerca de 60 quilos e custam 50 mil reais. “É peça de colecionador, de bibliófilo.” Alencar não sabe dizer quando começou o comércio de livros por metro, mas acredita que a utilização do objeto como enfeite “existe desde sempre”.
Provavelmente está certo. No século I depois de Cristo, o poeta romano Sêneca já alertava para o modismo de ornamentar a residência com rolos de papiro: “Muitas pessoas sem o ensino escolar usam os livros não como ferramentas para o estudo, mas como objetos de decoração para a sala de jantar”. Pelo visto, o comportamento perpetuou-se ao longo dos séculos. Atualmente, existem até profissionais especializados para determinar o tipo, a quantidade e posição adequada de livros nas prateleiras.
É o caso da decoradora Heloísa Resende, 26 anos, assídua compradora da loja O Belo Artístico. Ao perceber que um cliente tem a estante vazia, a jovem recomenda a transferência de alguns livros pessoais para o móvel. “O problema é quando não existe nada em casa. A opção mais barata é comprar alguns exemplares por metro.” Mas a profissional dá dicas para evitar constrangimentos: “É melhor pagar mais caro para ter obras literárias do que levar qualquer besteira. As visitas podem reparar.”
A combinação de cores e o volume de livros depende do ambiente. Na casa da decoradora, por exemplo, há três metros de livros espalhados por diferentes móveis. São clássicos literários herdados do avô. “Uma vez peguei A Divina Comédia para ler, mas parei nas 30 primeiras páginas. A linguagem é muito difícil. Eu gosto mesmo é de livros sobre coisas espirituais, sobre astronomia e a origem do universo.”
Heloísa tem pelo menos um cliente a cada seis meses disposto a pagar 800 reais pelo metro de livro, fora a consultoria. Mas é possível encontrar alternativas mais baratas em São Paulo, como o Sebo do Messias, no centro. Além dos 10 mil títulos à venda no varejo, há coleções de enciclopédias e livros jurídicos ultrapassados, ao custo de 100 reais o metro. “São obras encalhadas. Eu poderia vender como sucata por quilo, mas ganharia uma ninharia, uns 3 reais. Se elas têm capa bonita, posso desovar tudo como peça de decoração”, comenta Messias Antonio Coelho, proprietário da loja.
Tanto no Sebo do Messias como na livraria O Belo Artístico, as vendas de exemplares por metro são esporádicas, em média uma ou duas a cada mês. Mas é um filão que os donos não estão dispostos a perder. De toda maneira, os livreiros não aderem à moda de usar livros como peça de decoração. “Esse material não entra na minha casa”, atesta Alencar. Faz sentido.
Rodrigo Martins – Carta Capital

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