ANÁLISE: UMA GLOBALIZAÇÃO FELIZ, PORÉM CONTURBADA
Aquilo era bom demais para poder durar. Depois de vários anos de um crescimento sem precedente, do qual se beneficiaram tanto os países mais ricos quanto as nações mais pobres, a economia mundial, que até então vinha sendo favorecida por um ciclo virtuoso, o qual muitos pensavam que ele nunca mais acabaria, encontra-se brutalmente ameaçada pela crise imobiliária americana. Contudo, os especialistas haviam manifestado esperanças, e até mesmo arriscado previsões, de que esta última permaneceria restrita aos Estados Unidos, que ela provocaria prejuízos apenas em pequenas instituições especializadas, que seriam castigadas por terem assumido riscos inconsiderados ao concederem empréstimos a pessoas no limite da insolvência. Mas o fato é que a crise atinge agora bancos importantes e prestigiosos, americanos, mas também asiáticos e europeus. Na Alemanha, o ministro das finanças Peer Steinbrück foi obrigado a interromper as suas férias para montar rapidamente uma operação de salvamento de um banco em situação difícil, o IKB. A derrocada deste último foi qualificada de "mais grave crise bancária desde 1931" pelo diretor da instituição do governo que regulamenta o setor financeiro na Alemanha.
Diante destas notícias preocupantes, os investidores estão ficando assustados, o que provoca aumentos das taxas de juros e causa abalos nas Bolsas. Além disso, é o sistema financeiro internacional como um todo que está desestabilizado e, junto com ele, a economia mundial. Contudo, esta última estava indo tão bem. No final de junho, o diretor geral do Banco de Compensações Internacionais (BIS), Malcolm Knight, estava falando até mesmo numa "idade de ouro". Dopada pela decolagem das quatro economias dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China), países que cada vez menos podem ser considerados como emergentes, o crescimento econômico mundial registrou um avanço de 5,4% em 2006. O planeta não havia conhecido um aumento tão rápido da sua riqueza desde os anos 1960. Acima de tudo, nunca esta riqueza havia sido redistribuída de maneira tão eqüitativa. Até mesmo a África, que foi a grande preterida e esquecida econômica das duas últimas décadas, viu o seu PIB progredir em 5,5% em 2006. Que me perdoem os detratores da globalização, este crescimento excepcional permite uma diminuição espetacular da pobreza no mundo: 985 milhões de pessoas viviam com menos de US$ 1 por dia em 2004, contra 1,25 bilhão em 1990. De uma maneira tão inédita quanto, este forte crescimento não foi acompanhado por nenhum surto de inflação, apesar da explosão das cotações das matérias-primas.
Este "bom comportamento" dos preços desponta, também neste caso, como uma conseqüência benéfica da globalização, uma vez que a concorrência desenfreada à qual se dedicam as empresas, as impede de aumentar o preço dos seus produtos. No que vem a ser mais um elemento novo introduzido por esta fase de bonança, os desequilíbrios comerciais gigantescos são absorvidos sem dificuldades - em particular sem nenhuma crise de câmbio -, uma vez que os excedentes de determinados países acabam financiando os déficits de outros: para comprar camisetas "made in China", os americanos cavam buracos que Pequim se apressa a tapar adquirindo maciçamente empréstimos do Tesouro dos Estados Unidos.
Chegamos agora ao último aspecto deste panorama dos sonhos: apesar da concorrência dos países emergentes e dos movimentos de migração de empresas industriais de países ricos para regiões onde os encargos trabalhistas são menores, o desemprego foi reduzido para taxas historicamente baixas nos países industrializados (4,6% nos Estados Unidos, 3,7% no Japão, 6,9% na zona do euro). São níveis que desmentem a idéia segundo a qual a globalização é a inimiga dos nossos empregos, e de que os chineses e os indianos estariam nos roubando o nosso trabalho.
"Os episódios especulativos nunca terminam em final feliz"
Após ter evocado a idade de ouro da economia mundial, o diretor do BIS explicava em junho que a excelência da conjuntura econômica é "tão insólita" que é preciso se perguntar se ela é mesmo "perene". Aquela era uma dúvida premonitória. Isso porque, se a globalização é feliz, ela é também conturbada, repleta de colisões e de ondas de choque. Basta que o ânimo das famílias americanas arrefeça porque o valor da sua moradia anda diminuindo, e logo eles consumirão menos. Neste caso, as exportações chinesas diminuirão, Pequim comprará menos empréstimos de Estado americanos, as taxas de juros sofrerão uma disparada nos Estados Unidos, o dólar afundará, o euro levantará vôo, o que estrangulará as exportações européias. No final, todo mundo sofrerá. O emaranhado dos intercâmbios comerciais, das participações capitalistas e dos interesses financeiros tem uma conseqüência: da mesma maneira que é líquido e certo o fato que o crescimento de alguns faz a prosperidade dos outros, a crise econômica que pode vir a atingir alguns países resulta quase que fatalmente em fortes turbulências em outros. A globalização é repleta de colisões uma vez que ela está repleta de bolhas especulativas. A crescente primazia do mundo financeiro dentro da economia favorece o seu aparecimento (os ativos financeiros representam US$ 160 trilhões (mais de R$ 300 trilhões), ou seja, três vezes o PIB do planeta). Esta mesma tendência é consolidada pela tolerância excessiva dos bancos centrais, que sempre se mostram muito duros nas suas palavras, porém muito generosos nas suas atitudes de fato, o que autoriza os especuladores a se dedicarem ao seu esporte predileto sem serem incomodados. Depois dos bulbos de tulipa na Holanda no século 17 ou do crash de 1929, chegou a vez da crise americana dos "subprime mortgage" (hipotéca de risco), do qual não se pode prever hoje qual será o impacto.
Não faltam aqueles que já sonham com uma grande crepúsculo financeiro que viria questionar uma liberalização econômica, que eles julgam desenfreada, e a onipotência dos mercados, que eles consideram antidemocráticos. Ao passo que outros afirmam, pelo contrário, que a economia mundial demonstrou recentemente a sua resiliência, ou seja, a sua capacidade de corrigir os seus excessos e de superar os choques. Os países da Ásia vêm registrando atualmente desempenhos econômicos excepcionais, dez anos depois da crise financeira que os deixara na lona. O gigantesco crash dos valores tecnológicos de 2000 hoje não passa mais de uma recordação remota.
"O que nós sabemos com toda certeza",
explicava o economista americano John Kenneth Galbraith, "é que os episódios especulativos nunca terminam com um final feliz. É sábio prever o pior, mesmo que ele seja, segundo afirma a maioria das pessoas, pouco provável".
Pierre-Antoine Delhommais (LE MONDE)
Tradução: Jean-Yves de Neufville
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