ENTRESSEIO

s.m. 1-vão, cavidade, depressão. 2-espaço ou intervalo entre duas elevações. HUMOR, CURIOSIDADES, UTILIDADES, INUTILIDADES, NOTÍCIAS SOBRE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DE BENS CULTURAIS, AQUELA NOTÍCIA QUE INTERESSA A VOCÊ E NÃO ESTÁ NO JORNAL QUE VOCÊ COSTUMA LER, E NEM DÁ NA GLOBO. E PRINCIPALMENTE UM CHUTE NOS FUNDILHOS DE NOSSOS POLÍTICOS SAFADOS, SEMPRE QUE MERECEREM (E ESTÃO SEMPRE MERECENDO)

27 junho, 2008

GRÃOS NO PORÃO: "CAIXA FORTE" ESTOCA SEMENTES NA NORUEGA PARA EVITAR O FIM DO MUNDO

"Acima das nossas cabeças, há 40 metros de rocha dura, e isso nos protege de tudo. Além disso, vale acrescentar que se alguém arremessasse um foguete para dentro do túnel de acesso, a cavidade que foi construída lá embaixo, na sua extremidade, repercutiria a onda de choque de volta para a entrada". Em meio ao silêncio que predomina nesta galeria fria, com as suas paredes de concreto, Jarle Oksfjellelv, com uma voz tranqüila, enumera um por um os detalhes dos dispositivos que permitem garantir a segurança do tesouro aqui aprisionado. "A estrutura montanhosa dentro da qual nós cavamos é muito sólida. Houve um terremoto, no início de fevereiro, cujo epicentro estava situado a 150 quilômetros daqui, de 6,5 graus na escala de Richter. Isso não provocou rachadura alguma". Na extremidade do túnel de 120 metros de comprimento, que segue numa declive suave, após ter passado por duas pesadas portas de aço, o visitante descobre uma grande sala retangular. Dentro da parede, dá para adivinhar a existência de três outras portas. Só que por trás delas, não há nada muito interessante: três porões austeros e gelados. Mas elas foram concebidas para esconder um tesouro mais extraordinário do que aquele contido na caverna de Ali Baba: os grãos de vários milhões de variedades de plantas.
O antro das sementes! Cavado no arquipélago de Spitzberg, em Longyearbyen, a mais setentrional das cidades do globo, ele foi inaugurado em fevereiro. Ele constitui um elemento central da segurança alimentar mundial, a qual foi o tema principal da conferência da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, que foi realizada em Roma e que concluiu suas atividades na quinta-feira, 5 de junho.
Aqui, estamos mais perto do Pólo Norte, a 1.200 quilômetros, que de Oslo, a capital da Noruega, o país que controla essas ilhas cujas montanhas tornam-se cor-de-rosa sob o sol da primavera, depois da extensa noite de quatro meses que mergulhou na escuridão total este povoado onde moram 2.000 almas pacientes.
Nesta extremidade do mundo, aos caçadores que fizeram desaparecer da região, logo no século 18, os abundantes rebanhos de baleias-francas -lentas demais para escaparem dos arpões- se sucederam os mineiros de carvão, e mais tarde, há cerca de vinte anos, os cientistas e os turistas. Estes últimos sempre se deleitam com o espetáculo dessas terras de banquisa e de auroras boreais. É um lugar ideal para empreender a construção daquilo que deverá se tornar a maior coleção mundial de sementes, a "caixa-forte" na qual os homens poderiam repor seus estoques, caso uma determinada cultura importante viesse a estar ameaçada.
Um sistema de refrigeração mantém uma temperatura de 18 °C abaixo de zero na sala onde as prateleiras já armazenam as primeiras caixas de plástico preto. Estas contêm 268.000 amostras de trigo, milho, batatas, tomates, abobrinhas, enviadas do México, Peru e Colômbia. O ar é muito seco e deve apresentar uma taxa inferior a 5% de umidade. O frio e a secura são as condições essenciais para impedir que os grãos germinem. E se, por um azar, o sistema de refrigeração fabricado na Itália parasse de funcionar, o pergelisol, como é chamada a espessa camada de terra gelada que se encontra tanto em Spitzberg como em superfícies de milhões de km2 na Sibéria e no Canadá, manteria a caverna que nela está encaixada numa temperatura de 5 °C abaixo de zero.
Este dispositivo será mesmo verdadeiramente útil? Obviamente, Ola Westengen, que integra a equipe dos responsáveis pela sua manutenção, baseada em Oslo, está convencida disso. "Há um ano e meio, nas Filipinas, um banco nacional de sementes foi destruído por um tufão. Quase tudo foi perdido. No Iraque e no Afeganistão, no decorrer das guerras, as coleções locais de sementes também foram destruídas. Assim, o antro de Spitzberg permitirá conservar uma cópia de cada uma delas, própria para socorrer os bancos de grãos pelo mundo afora", garante.
Foram recenseados cerca de 1.400 bancos de sementes em todo o planeta. A ambição do antro, que é administrado pelo governo norueguês em parceria com a organização internacional independente Global Crop Biodiversity Trust (Fundo Fiduciário Global para a Diversidade das Culturas), é de reunir no médio prazo 4,5 milhões de amostragens de variedades das 250.000 plantas conhecidas. Com efeito, para um bom número dentre elas, camponeses e especialistas em sementes desenvolveram dezenas de variedades diferentes.
A idéia de conservar as sementes das espécies cultivadas é relativamente recente. O pioneiro deste projeto é o russo Nicolas Vavilov, nascido em 1887, que compilou e colecionou mais de 60.000 amostragens de trigo, de cevada, de ervilhas, de lentilhas, etc. O raciocínio deste geneticista era que se essas variedades estivessem bem adaptadas ao seu meio-ambiente, elas deveriam conter genes úteis que poderiam ser introduzidos por meio de cruzamentos nas plantas que eram então cultivadas na Rússia.
A equipe de Vavilov acabaria comprovando, mostrando uma abnegação heróica, a importância do trabalho realizado: em 1942, durante a onda de fome provocada pelo terrível sítio dos nazistas a Leningrado, os seus colaboradores, Alexandrer Stchukin e Dimitri Ivanov, preferiram se deixar morrer de fome a se servirem nas toneladas de sementes -que poderiam muito bem alimentá-los- das quais eles eram os guardiões. Ja Vavilov, vítima de um processo staliniano, morreu numa prisão siberiana em 1943.
Sessenta anos mais tarde, o seu raciocínio revela ser mais pertinente do que nunca. Com a industrialização da agricultura, a "revolução verde", e com a expansão de grandes firmas que desenvolvem sementes tais como a Monsanto, a Pioneer ou a Limagrain, a produção alimentar mundial de fato alcançou níveis recordes, mas concentrando-se num número reduzido de variedades: uma estimativa dá conta de que cerca de 200 plantas apenas vêm sendo cultivadas para fins alimentícios. Isso significa que se doenças se desenvolvessem nessas culturas, elas poderiam adquirir uma dimensão planetária cujas conseqüências seriam enormes. Este risco vem sendo acentuado pela erosão muito rápida da biodiversidade: esta poderia provocar o desaparecimento de insetos polinizadores ou favorecer, por conta da ausência dos seus predadores, a proliferação de insetos ou de champignons. Além de tudo, a mudança climática deverá fazer com que as principais culturas mundiais sofram um estresse importante. Por isso, é vital preservar um grande número de variedades dessas plantas cultivadas: aquelas que não são cultivadas possuem sem dúvidas características adaptadas a essas novas ameaças.Contudo, o fato de conservá-las dentro de uma "caixa-forte do Apocalipse" ou uma "nova Arca de Noé", conforme as expressões que foram utilizadas a respeito do antro de Spitzberg, será mesmo um meio ideal? "É claro que não!", exclama Jean-François Berthellot. "O que o antro de Spitzberg está preparando para nós no futuro é um enorme saco repleto de muitos genes próprios para criar plantas artificiais. Mas a agricultura é uma prática viva!" Este camponês-padeiro está caminhando por todos os lados de um campo que mais se parece com um jardim: ele é composto por dezenas de pequenas parcelas nas quais crescem ervas -de fato, diversos tipos de trigo- de tamanhos diferentes, sob o sol do departamento de Lot-et-Garonne. "Quando eu aprendi a transformar o trigo, comecei a compreender que diversas variedades produziam pães diferentes. O gosto, a cor, a tessitura, eram diferentes. Eu procurei outros tipos de trigo. Para a minha surpresa, não encontrei quase nenhum: apenas 15 variedades antigas na França".
Já faz cerca de dez anos, Jean-François Berthellot empreendeu localizar os diferentes tipos de trigo nos conservatórios que existem na Europa. Todos os anos, ele reproduz no seu campo cerca de 250 variedades, as quais compõem sem dúvida a maior coleção viva atual. Mais adiante, num armazém, ele retira de um caixote as espigas de formas e de cores diferentes: "Aqui está a Dickopf, um trigo alemão de cabeça grossa, de grãos muito apertados; aqui o Vilmorin, de 1927, muito compacto; este é o Apache, pequeno e cinza; o Branco da Reole; a Bladette de Puylaurens. . ." Ele começa então a descrever com detalhes as alturas variáveis, as cores (verde, verde-azul, o caule amarelo e a espiga vermelha, etc.), a forma da espiga em coronha ou não, a propensão à "talagem" (várias espigas), a maior ou menor cobertura do terreno pela planta, a dureza do grão, a cor (branca ou amarela) da farinha que cada tipo de grão produz. Todas elas apresentam características próprias, que são anotadas com precisão, cada uma das quais correspondendo a uma adaptação às características locais do ecossistema.
Não há nostalgia alguma, nenhuma inclinação para a prática de colecionar, nos modos de proceder de Berthellot e das dezenas de agricultores que participam com ele da Rede das Sementes Camponesas, mas sim a convicção de que a agricultura precisa retornar aos princípios da prática milenar do intercâmbio de sementes entre camponeses. Afinal, em sua quase-totalidade, as plantas que os homens utilizam atualmente foram selecionadas e domesticadas na época do neolítico, há vários milhares de anos. E no decorrer desses milhares de anos, os agricultores trocaram entre eles as sementes e as replantaram de ano em ano."Tudo mudou no início do século 20", conta Jean-François Berthellot, "quando as firmas produtoras de sementes começaram a difundir variedades cuja principal característica era a produtividade. Uma vez que todo mundo buscava um maior rendimento, os camponeses se precipitaram sobre essas novas sementes, e aos poucos, acabaram abandonando aquelas que eles vinham utilizando até então. A partir dos anos 1950, as variedades antigas desapareceram dos catálogos".
O resultado disso foi efetivamente uma agricultura muito produtiva. Mas as grandes firmas dominam o mercado e restringem a biodiversidade cultivada. Será que o antro de Spitzberg responde a contento a esta situação? Ola Westengen reconhece os limites da empreitada: "É claro que a preservação das variedades no terreno é essencial; os nossos procedimentos não entram em contradição com esta necessidade".
Mas não é menos verdadeiro que poucos recursos têm sido concedidos aos pequenos camponeses que, pelo mundo afora, tentam manter a variedade das espécies cultivadas. Ao passo que é da sua atividade, conforme passaram a reconhecer agora os especialistas da FAO e do Banco Mundial, que depende a segurança alimentar. "O antro do Spitzberg é um banco para o fim do mundo", comenta Jean-François Berthellot. "Mas é preciso evitar que o fim do mundo aconteça!" O camponês-padeiro considera que é nas lavouras que deve viver a biodiversidade.
Hervé Kempf
Enviado especial do Le Monde a Spitzberg (Noruega) e Lot-et-Garonne (França)
Tradução: Jean-Yves de Neufville

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