ENTRESSEIO

s.m. 1-vão, cavidade, depressão. 2-espaço ou intervalo entre duas elevações. HUMOR, CURIOSIDADES, UTILIDADES, INUTILIDADES, NOTÍCIAS SOBRE CONSERVAÇÃO E RESTAURO DE BENS CULTURAIS, AQUELA NOTÍCIA QUE INTERESSA A VOCÊ E NÃO ESTÁ NO JORNAL QUE VOCÊ COSTUMA LER, E NEM DÁ NA GLOBO. E PRINCIPALMENTE UM CHUTE NOS FUNDILHOS DE NOSSOS POLÍTICOS SAFADOS, SEMPRE QUE MERECEREM (E ESTÃO SEMPRE MERECENDO)

13 dezembro, 2010

PODE CRER, É VERDADE - 13-12-10

O Ex-Rio do poeta da vila
Como estão hoje lugares da Vila Isabel, da Penha e da Lapa cantados por Noel
Quem muito fala dos outros, sem se dar conta, acaba, pela própria boca, traçando um retrato de si mesmo. Noel de Medeiros Rosa, cujo centenário de nascimento celebra-se hoje, provou meteoricamente deste veneno. Quatro anos depois de ter se tornado popular com o grande sucesso de Com que Roupa, gravada em setembro de 1930, ele versou: "e sendo um tipo que assimila tanto tipo/ Passou a ser um tipo que ninguém esquece".
Assim se deu com Noel. Em apenas 26 anos de vida - vitimado pela tuberculose -, ele revolucionou não apenas o samba, mas a música brasileira.
Alçado ao estrelato pelas vozes dos maiores cantores da Época de Ouro do rádio, como Francisco Alves e Mario Reis, por Marília Baptista e Aracy de Almeida, sua melhor intérprete feminina, Noel abandonou o beletrismo formal, e com extrema originalidade, refinamento e ironia, abusou do coloquialismo para radiografar os personagens do cotidiano de seu tempo. Eram o bicheiro, os fortões, o filho do alfaiate, o português, o gago, o milionário, o malandro e as "damas do amor" dos cabarés.
Completo e versátil, também se eternizou por, de forma camaleônica, deixar de lado a galhofa dos sambas em forma de crítica e crônica social, como Onde Está a Honestidade?, Quem Dá Mais? (Leilão do Brasil) e Filosofia, para cantar o amor com densidade, em letras muitas vezes autobiográficas, como Pela Primeira Vez, Três Apitos e Até Amanhã. Eram temas muito mais elaborados do que os dos tempos de estreia ao lado de Almirante e Braguinha, no Bando dos Tangarás.
Além disso, Noel também soube registrar com maestria sua devoção pelo Rio. Ao contrário do que muito se pensa, ele cantou muito mais a Penha e a Lapa do que a própria Vila Isabel, bairro na zona norte carioca, onde nasceu o compositor. Na semana do centenário do Poeta da Vila, o Estado percorreu lugares cantados por Noel e outros pontos relacionados a sua biografia.
Não tem tradução. O que liga Tom Jobim a Noel Rosa não é apenas o fato de os partos dos dois terem sido realizados pelo mesmo médico, o doutor José Rodrigues da Graça Melo, nem tão pouco a admiração de Tom declaradamente aberta ao cancioneiro de Noel. Ambos, cada um em seu tempo, criticavam - fosse nas músicas ou em entrevistas - as crescentes transformações de um "progresso" destruidor da antiga capital federal.
Visitar hoje os locais cantados pelo Poeta da Vila é constatar que o Rio da infância de Tom, "quando Copacabana era um imenso areal repleto de crianças e bichos", e da maturidade de Noel morreu há tempos.
A começar pela casa onde ele nasceu, no número 392 da Rua Teodoro da Silva, em Vila Isabel, local hoje ocupado por um prédio de quatro andares. O descaso com tal patrimônio histórico e cultural só não é maior porque o imóvel leva pelo menos o nome de Edifício Noel Rosa.
Pelo bairro onde nasceu, a figura e a obra do poeta ainda pulsam. Ele está lá, servido numa mesinha de bar por um garçom, em estátua erguida na entrada da Vila, homenageando à famosa Conversa de Botequim. Mais adiante, a fachada da Escola Municipal República Argentina tem pichada uma caricatura de Noel ao lado dos versos de Feitiço da Vila: "Quem nasce lá na Vila/ Nem se quer vacila/ Ao abraçar o samba", de Feitiço da Vila, resposta no famoso embate com o "rival" Wilson Batista.
Ali perto, em ensaio a céu aberto, acompanhados de ritmistas e passistas, o mestre de bateria, Átila, e o puxador, Tinga, da escola de samba Vila Isabel, entoam o mesmo tema. O cenário, porém, o Boulevard Vinte e Oito de Setembro, é outro. Antigamente, a rua era ocupada por palmeiras, casas baixas e diversos cinemas, como o Cine Villa Isabel. Construções como esta motivaram o compositor a escrever Não Tem Tradução, criticando as transformações impostas pelo estrangeirismo, defendendo o "modernismo" na canção nacional. Hoje, a avenida é tomada por postes e edifícios enormes.
Partindo para o bairro mais cantado por Noel, a Penha (em Feitio de Oração, Meu Barracão, Fiquei Rachando Lenha, entre outras), a transformação é desoladora. O alto da escadaria da Igreja Nossa Senhora da Penha é o lugar em que, nos anos 30, compositores se reuniam para apresentar suas novidades. De onde se via o verde dos morros, vê-se um amontoado de barracos, que formam complexos de favelas, como o da Penha, Alemão e Vila Cruzeiro.
Montmartre tribalizada. Outros locais cantados por Noel e que passaram por transformações brutais foram a Lapa e o Centro do Rio. Neste último, os principais pontos históricos foram tomados por bancos e instituições financeiras. O lendário Café Nice, por exemplo, na Avenida Rio Branco, frequentado outrora pelo Poeta da Vila e figuras como Orlando Silva, Sílvio Caldas, Pixinguinha, Ary Barroso e Lamartine Babo, hoje é ocupado por um edifício gigantesco da Caixa Econômica Federal. A esquina da mesma avenida com a Rua da Assembleia, onde ficava a Casa Vieira Nunes, agora é tomada pelo Banco do Brasil. A Rua do Ouvidor, ocupada por Bradesco e Santander, ainda continua estreita, lotada predominantemente por pedestres. Na época de Noel, ele foi uma das primeiras pessoas a ter carro no Rio. Por ali, circulava com seu veículo, desculpando-se com os guardas para não ser multado.
Perto dali, na Praça Tiradentes, o traçado das ruas continua intacto. Mudaram apenas os edifícios que a circundam, como hotéis modernos, e a renovada fachada do Teatro João Caetano. A praça fora um dos pontos de ebulição do teatro de revista, onde Noel se destacou, compondo Com que Roupa e Gago Apaixonado.
Na mesma região, o bairro da Lapa manteve parte das construções da década de 30. A mudança mais significativa é a dos frequentadores. Conhecido antigamente como a Montmartre Tropical, o bairro que inspirou direta ou indiretamente o Poeta da Vila, em Dama do Cabaré e Último Desejo, recebia boêmios, sambistas, chorões e meretrizes.
Hoje, ao local ainda chega um público formado por quem é afeito ao samba, mas também outras tribos, como transexuais e amantes do reggae e do rock. É o caso dos metaleiros da banda Unearthly, que ensaiam no bar Satisfaction, na mesma Rua Riachuelo frequentada por Noel. "A Lapa é conhecida por sua diversidade. A gente conhece pouco do repertório do Noel, mas respeita sua importância", diz o vocalista e guitarrista Felipe Araujo (cujo nome artístico é Felipe Eregion). "Acho que ele até gostaria de ver a Lapa hoje. Ele foi moderno no tempo dele e a gente é a modernidade de hoje", comenta o baixista Marcelo França.
Lucas Nobile
Estadão.com.br

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