ANA MOURA A FADISTA NÃO É DIFERENTE DA MULHER
Desde o primeiro momento que o fado de Ana Moura encantou: pela voz baixa, encorpada, pelo rosto repleto de mistério, pela tensão entre tradição e modernidade- desde o primeiro momento conseguiu uma rara unanimidade entre público e crítica. Depois vieram múltiplas digressões pela Europa, o começo da conquistado mercado americano e a consagração final de "Para Além da Saudade", disco editado o ano passado e que atingiu a platina. Normalmente demora-se uns anos a chegar tão alto, mas este é apenas o terceiro álbum de uma carreira iniciada em 2003 com "Guarda-me a Vida na Mão" e continuadadois anos depois com "Aconteceu". Agora esta ribatejana nascida em 1979 prepara-se para dois concertos especiais: os coliseus, terça-feira (24) no Portoe quinta-feira (26) em Lisboa. Antes de subir ao palco, entre decisões de decoração de cenário e sessões de fotografia, Ana Moura sentou-se à conversa com a Pública, com o fado semprepor perto, mas num registo mais pessoal que o habitual: rejeitou a ideia de ser um símbolo sexual, falou das suas fobias, dos pais, da sua timidez, dassuas vaidades, da sua teimosia. E contou que, no palco, sem um xaile às costas, não sabe onde pôr as mãos - mas é nítido que entre inseguranças sabe oque quer, ou pelo menos o que não quer. Sem os vestidos de José António Tenente a protegê-la, vestida de forma simples, de "jeans" e camisola de alças branca, tropeçou no seu pouco à-vontade,foi confessional, aqui e ali deixou a timidez de lado - e por vezes não sabemos se quem respondeu foi Ana Moura, a fadista, ou Ana, a mulher que diz serreservada e impulsiva ao mesmo tempo.
Está a preparar os coliseus: que vai acontecer nesses concertos? Vou contar a minha história, aquilo que eu tenho feito. Hoje tive uma reunião para a montagem do palco, quero que o palco esteja montado de forma a nãodesviar as atenções do que é realmente importante, que é a música.
É picuinhas ao ponto de se envolver nesses pormenores? Preciso de dar a minha opinião em relação a essas coisas, porque gosto de me sentir confortável. Tenho pessoas que me rodeiam e que sugerem isto ou aquilo- querem dar o seu melhor, claro, mas às vezes o que elas querem não me deixa à vontade.
Custa-lhe contrariar quem está à sua volta? Já me custou mais. No início da minha carreira tinha essa dificuldade, porque as pessoas já estavam neste meio há mais tempo e eu não fazia ideia do queera ser artista - porque eu canto, escolho as minhas músicas, mas ser artista é outra coisa. Uma coisa é sentir que foi para isto que nasci, outra coisaé a forma como as pessoas que estão de fora olham para isto: vêem o lado glamouroso e pensam que somos artistas.
Há certas "obrigações" em ser artista. Hoje de manhã esteve a fazer fotografias para a Pública. Como é que se sente nessa posição? Fizemo-las no Coliseu. Não deu para fazer no palco, mas estivemos no café do Coliseu, havia uma luz muito bonita através das janelas. Depois vi na câmarao resultado final e pareciam fotografias de estúdio, senti-me mesmo muito bonita, metade da cara estava na sombra, metade tinha luz natural. Muito bonito.
Há aí vaidade. Sim, tenho a minha vaidade, sim. Não sou uma pessoa que goste de vestir coisas muito excêntricas, gosto de ser simples, mas tenho a minha vaidade feminina.
O que pede ao José António Tenente, que a veste? Quais são as características que eu quero num vestido? Simplicidade, elegância e feminilidade. Não gosto de me sentir "sexy", gosto de me sentir sensual."Sexy" é um bocadinho mais ousado, sensual é mais misterioso, é despertar sentidos, mas de uma forma muito discreta.
Isso ajuda a ser vista como um símbolo sexual? Não me sinto um símbolo sexual. De todo. Não gosto sequer de exagerar num decote. Tenho de estar confortável.
Disse uma vez que o que a atraía no fado era o lado religioso e misterioso. O que queria dizer com isso? Lado religioso no sentido do respeito pelo fado, pela tradição. E há o sofrimento, que faz parte das nossas vidas - e nós deveríamos desenvolver-nos comele. A tristeza faz sentido na nossa vida, se não estivermos predispostos a viver a vida, ficamos na apatia. Temos de conviver com a alegria e com a tristeza,com tudo: eu sou uma pessoa superemotiva, que sinto as coisas à flor da pele. Agora perdi-me...
Estávamos a falar do lado religioso e do lado misterioso do fado. O lado misterioso... Acima de tudo tem de se viver, e se nós vivermos, temos histórias para contar e o fado é isso mesmo, contar histórias. A maior partedo que canto é vivido, as letras que eu escolho são vividas. É claro que há também um lado de personagem, mas eu tento sempre escolher poetas que possamescrever para mim e que me conheçam. Adoraria que o Pessoa fosse vivo e que soubesse quem sou e me desse alguma importância e achasse que podia escreveralgo para mim.
O ritual do vestir, do subir ao palco, da encenação - isso permite libertar coisas que normalmente não libertaria? Sim. Temos encenação para nos proteger. Se bem que uma das minhas grandes lutas foi sempre a de não ficar presa numa personagem. Ainda hoje falo muitopouco, só digo aquilo que estou a sentir no momento e no início era muito tímida, era raro o espectáculo em que eu dizia uma palavra - mas mesmo aí eunão queria estar defendida por uma personagem. Foi uma das minhas lutas, porque as pessoas com que eu trabalhei achavam que isso não era ser artista.
Disse que fala pouco mas quando fala diz o que sente no momento. O que quer dizer que é impulsiva. Já fui mais. Neste momento penso um bocadinho mais antes de falar. Ainda há pouco, no estrangeiro, no palco, tinha 1500 pessoas à minha frente e estavadefendida, mas depois se entro num café cheio de gente fico muito pouco à vontade.
Nessas mesas de café nunca tem receio que se interessem mais pela Ana Moura fadista que pela Ana? Isso acontece-me muito. Há um lado querido porque as pessoas acarinham-me, mas por outro lado nunca sou a Ana, e as pessoas estão sempre a reparar nistoe naquilo e eu fico desconfortável. Por vezes pensam que a Ana Moura é diferente da Ana, mas não é, de todo.
Há preconceitos de quem nasceu no meio fadista para com quem não nasceu em Alfama ou viveu em tabernas desde miúdo? Sim. Embora eu, que nasci no Ribatejo, em Coruche, e toda a minha aprendizagem do fado foi feita nas tertúlias fadistas e não nas casas de fado lisboetas,não me possa queixar, porque quando comecei a cantar no Senhor Vinho fui muito bem acolhida por todos os fadistas. Eles ouviram-me e disseram: "Tu és fadista."Fui muito acarinhada.
Vocês falam muito dos mestres, elogiam-se mutuamente, mas quanto mais conhecemos os fadistas fica-se com a ideia de que há algum ciúme. Esta percepçãoé errada? Só posso falar no meu caso pessoal: quando alguém do fado vai lá fora dar concertos e tem êxito vejo isso como positivo, porque o vejo como uma vitóriado fado. O que eu sinto em relação a esta nova geração é que os estilos já estão definidos e portanto há um público que se identifica com este fadista,outro público com outro fadista - é claro que há fadistas que abrangem mais públicos, mas cada um tem uma personalidade tão firmada que não há necessidadede ciúme. Eu continuo a ir a casas de fados porque me faz falta estar com as outras fadistas.
Vocês dizem entre si coisas como "aquela nota que tu deste é sublime"? Ai, eu sim. Sou muito espontânea e se a pessoa me faz sentir algo digo logo.
Como é que uma tímida é espontânea? Não sei, não faço ideia. Que sou tímida, sou. Extremamente. Aliás, é um dos meus grandes defeitos, porque aliado a isso vem muita coisa, a timidez impede-mede fazer muita coisa. Crio fobias.
Então? Tenho muitas fobias, em particular a sítios com muita gente. Depois tenho outras pequeninas, mas que não me apetecia nada contar. [Depois conta, mas pede para não publicar.]
Com as suas fobias e receios, a andar em digressão num autocarro dia após dia, a ter de cantar a mesma canção todas as noites, nunca tem vontade de mandartudo às malvas? Não. Porque apesar de ser tímida acho que sou muito forte. Sempre que vou pela primeira vez a um país estou preparada para o pior, porque não sei que públicoé que vou ter. Mas também até agora não tive experiências desagradáveis e tenho regressado aos sítios onde toco pela primeira vez, o que quer dizer queas coisas correm bem.
Por mais bem que se cante bem, é preciso uma estrutura por trás para chegar às pessoas? Sim, cada vez mais. Precisamos de exposição porque as pessoas só se identificam com o que ouvem - e para nos ouvirem é preciso todo um trabalho de marketingà volta de um cantor.
Os portugueses estão a perder a vergonha de vender o seu produto? De assumir que querem vencer e prepararem-se para isso? Claro. Isso sente-se nesta nova geração, é menos preconceituosa, muito mais aberta. É uma evolução natural que chegou também ao fado. Mas há coisas quenão mudam: desde o início que me disseram que o fado se cantava com um xaile e hoje eu não consigo cantar sem xaile. O xaile significa protecção e de factosinto-me aconchegada com o xaile, se cantar sem xaile, não sei onde pôr as mãos.
Além da poesia, de que diz gostar, o que lê? Gosto de histórias um bocadinho trágicas, por acaso. O livro que acabei de ler é o "Werther", do Goethe. Gosto muito desse tipo de livros. Não sou obrigatoriamentede romances, vou à procura de algo que me desperte interesse num momento da minha vida.
O que quer dizer que este é um momento de tragédia amorosa? Se calhar [risos].
Com todo esse lado emocional, é mulher para pensar muito sobre cada pormenor da vida? Eu gosto de pensar sobre as coisas - e passo muito tempo a fazê-lo. Considero-me uma pessoa coerente naquilo que acredito mas não sou uma pessoa de ideiasfixas.
Portanto é daquelas pessoas a quem dizem: "Tu pensas de mais." É isso mesmo. Estou sempre às voltas. Às vezes apetecia-me ter aqui um botãozinho e desligar.
Para não ter insónias. Também tenho, sim. Depende das alturas, mas também tenho.
Falemos de outra coisa: politicamente situa-se mais à esquerda ou à direita? Mais à esquerda.
Era capaz de fazer declarações políticas, se isso pusesse em causa a sua carreira? Toda a minha atitude, mesmo no meu dia-a-dia, é de nunca me manifestar muito sobre certas coisas. Estou aqui para fazer o que tenho a fazer, para seguiro meu caminho. Até agora sempre disse que não a convites partidários.
Como é que surgiu a digressão que fez nos Estados Unidos da América? Eu fui uma vez, a convite do Jorge Fernando, cantei dois fados e no final o director do Instituto World Music veio dizer-me: "Um dia vou trazê-la aqui."Qual foi o meu espanto quando, ao chegar lá, descobrir que ia tocar no Carneggie Hall, e estava esgotado. Era um concerto só meu, havia imensos cartazes,foi uma experiência inesquecível. Este ano voltei lá e foi uma digressão fantástica: comecei em Nova Iorque, com as salas todas esgotadas. Logo no primeiroconcerto tive uma crítica no "New York Times" que me fez sentir muito bem. Cheguei a Los Angeles e fiz um "show" em rádio e por causa desse programa enchio espectáculo em Los Angeles. Tudo isto me vai dando mais confiança, vai-me ajudando a dedicar-me por completo à minha carreira.
Põe tudo de parte para cantar? É isso que tenho feito, mas neste momento estou a tentar ver se encontro um equilíbrio e se arranjo vida pessoal.
Tendo tocado em tanto sítio, alguma vez lhe aconteceu pensar: "Gostava de morar nesta cidade"? Aconteceu-me com várias. Bem, neste momento era incapaz de viver fora de Portugal. Mas, para passar umas boas temporadas, há vários sítios. Dou-me muitobem na América, gosto do povo, são muito descontraídos, não são preconceituosos, falam muito. Gosto muito de Barcelona e de Paris, aí não me importavade ficar lá uns meses. A minha preocupação quando vou a algum sítio é tentar perceber a cultura local e enturmar-me, imaginar como seria viver nessa cultura.Quando vou para outro país, não vou à procura da minha comida. Quando fui à China fui aos templos, fiz aqueles rituais todos. A experiência de ir à Chinamarcou-me imenso pela diferença de culturas. Fui do norte ao sul, Pequim, Xangai, Hong Kong, Ankara.
Em relação à crítica no "New York Times": isso tocou-a? Muito. Fiquei feliz. Às vezes as pessoas pensam que nestas digressões andamos a passear e conhecer tudo, mas não: é intensivo, com muito trabalho, as viagenssão muito longas e depois do avião ainda temos de andar muito de carro e de manhã temos entrevistas, à tarde teste de som, à noite concerto, e depois segue-separa outra cidade. É uma entrega total e estas críticas servem para nos acarinhar.
Nessa crítica realçavam o facto de cantar sem microfone, o que faz muitas vezes. Porquê? Para mostrar um pouco o que se faz nas casas de fado. Era incapaz de fazer uma digressão inteira sem microfone, mas se pudesse eu fazia, porque prefiroouvir a minha voz ao natural, em vez de através de um microfone ou um monitor de som. Não me consigo adaptar, não consigo ouvir a música só nos meus ouvidos,tenho de a ouvir a bater no meu corpo todo.
Os seus pais leram a crítica? Eles viram no Telejornal e depois na Internet. Eles têm orgulho. O meu pai tocava viola, cantava, tinha um grupo antes de se casar com a minha mãe, crescia ouvir os meus pais a cantar, desde miúda que ia com eles ao fim-de-semana cantar com os amigos.
Tem irmãos? Um irmão, dois anos mais velho. Também tem muito orgulho da minha carreira.
Quando vai em digressão o namorado fica muito ciumento? Sim, por isso é que é difícil ter-se um namorado com esta carreira, porque não entendem.
E as histórias de as fadistas apaixonarem-se pelos guitarristas, são verdadeiras? Acho que é fácil isso acontecer, porque a partir do momento em que só se vive para a profissão e só se convive com aquelas pessoas eu acho que é fácil.E têm a mesma linguagem.
Quando chega a casa de uma digressão e não tem nada marcado na agenda, como é? Só quero dormir, porque há um cansaço... Mas sem agenda marcada às vezes há um vazio. É engraçado porque eu estou sempre a desejar ter descanso, mas depoisquando o tenho sinto-me como peixe fora de água. Entro um bocadinho em pânico. E aí só há os amigos e a família. Sou muito agarrada à família, aos meuspais, ao meu irmão, à minha sobrinha.
Tem uma sobrinha... Com a vida que tem, gostava de ter filhos? Sim. Muitos [risos.]. Dois. Gostava muito, não agora, mas gostava muito. Numa casa com quintal, para eles terem a liberdade de andar na terra, porque essafoi a minha infância. E fora de Lisboa. Com muito verde.
Jornal Público
Está a preparar os coliseus: que vai acontecer nesses concertos? Vou contar a minha história, aquilo que eu tenho feito. Hoje tive uma reunião para a montagem do palco, quero que o palco esteja montado de forma a nãodesviar as atenções do que é realmente importante, que é a música.
É picuinhas ao ponto de se envolver nesses pormenores? Preciso de dar a minha opinião em relação a essas coisas, porque gosto de me sentir confortável. Tenho pessoas que me rodeiam e que sugerem isto ou aquilo- querem dar o seu melhor, claro, mas às vezes o que elas querem não me deixa à vontade.
Custa-lhe contrariar quem está à sua volta? Já me custou mais. No início da minha carreira tinha essa dificuldade, porque as pessoas já estavam neste meio há mais tempo e eu não fazia ideia do queera ser artista - porque eu canto, escolho as minhas músicas, mas ser artista é outra coisa. Uma coisa é sentir que foi para isto que nasci, outra coisaé a forma como as pessoas que estão de fora olham para isto: vêem o lado glamouroso e pensam que somos artistas.
Há certas "obrigações" em ser artista. Hoje de manhã esteve a fazer fotografias para a Pública. Como é que se sente nessa posição? Fizemo-las no Coliseu. Não deu para fazer no palco, mas estivemos no café do Coliseu, havia uma luz muito bonita através das janelas. Depois vi na câmarao resultado final e pareciam fotografias de estúdio, senti-me mesmo muito bonita, metade da cara estava na sombra, metade tinha luz natural. Muito bonito.
Há aí vaidade. Sim, tenho a minha vaidade, sim. Não sou uma pessoa que goste de vestir coisas muito excêntricas, gosto de ser simples, mas tenho a minha vaidade feminina.
O que pede ao José António Tenente, que a veste? Quais são as características que eu quero num vestido? Simplicidade, elegância e feminilidade. Não gosto de me sentir "sexy", gosto de me sentir sensual."Sexy" é um bocadinho mais ousado, sensual é mais misterioso, é despertar sentidos, mas de uma forma muito discreta.
Isso ajuda a ser vista como um símbolo sexual? Não me sinto um símbolo sexual. De todo. Não gosto sequer de exagerar num decote. Tenho de estar confortável.
Disse uma vez que o que a atraía no fado era o lado religioso e misterioso. O que queria dizer com isso? Lado religioso no sentido do respeito pelo fado, pela tradição. E há o sofrimento, que faz parte das nossas vidas - e nós deveríamos desenvolver-nos comele. A tristeza faz sentido na nossa vida, se não estivermos predispostos a viver a vida, ficamos na apatia. Temos de conviver com a alegria e com a tristeza,com tudo: eu sou uma pessoa superemotiva, que sinto as coisas à flor da pele. Agora perdi-me...
Estávamos a falar do lado religioso e do lado misterioso do fado. O lado misterioso... Acima de tudo tem de se viver, e se nós vivermos, temos histórias para contar e o fado é isso mesmo, contar histórias. A maior partedo que canto é vivido, as letras que eu escolho são vividas. É claro que há também um lado de personagem, mas eu tento sempre escolher poetas que possamescrever para mim e que me conheçam. Adoraria que o Pessoa fosse vivo e que soubesse quem sou e me desse alguma importância e achasse que podia escreveralgo para mim.
O ritual do vestir, do subir ao palco, da encenação - isso permite libertar coisas que normalmente não libertaria? Sim. Temos encenação para nos proteger. Se bem que uma das minhas grandes lutas foi sempre a de não ficar presa numa personagem. Ainda hoje falo muitopouco, só digo aquilo que estou a sentir no momento e no início era muito tímida, era raro o espectáculo em que eu dizia uma palavra - mas mesmo aí eunão queria estar defendida por uma personagem. Foi uma das minhas lutas, porque as pessoas com que eu trabalhei achavam que isso não era ser artista.
Disse que fala pouco mas quando fala diz o que sente no momento. O que quer dizer que é impulsiva. Já fui mais. Neste momento penso um bocadinho mais antes de falar. Ainda há pouco, no estrangeiro, no palco, tinha 1500 pessoas à minha frente e estavadefendida, mas depois se entro num café cheio de gente fico muito pouco à vontade.
Nessas mesas de café nunca tem receio que se interessem mais pela Ana Moura fadista que pela Ana? Isso acontece-me muito. Há um lado querido porque as pessoas acarinham-me, mas por outro lado nunca sou a Ana, e as pessoas estão sempre a reparar nistoe naquilo e eu fico desconfortável. Por vezes pensam que a Ana Moura é diferente da Ana, mas não é, de todo.
Há preconceitos de quem nasceu no meio fadista para com quem não nasceu em Alfama ou viveu em tabernas desde miúdo? Sim. Embora eu, que nasci no Ribatejo, em Coruche, e toda a minha aprendizagem do fado foi feita nas tertúlias fadistas e não nas casas de fado lisboetas,não me possa queixar, porque quando comecei a cantar no Senhor Vinho fui muito bem acolhida por todos os fadistas. Eles ouviram-me e disseram: "Tu és fadista."Fui muito acarinhada.
Vocês falam muito dos mestres, elogiam-se mutuamente, mas quanto mais conhecemos os fadistas fica-se com a ideia de que há algum ciúme. Esta percepçãoé errada? Só posso falar no meu caso pessoal: quando alguém do fado vai lá fora dar concertos e tem êxito vejo isso como positivo, porque o vejo como uma vitóriado fado. O que eu sinto em relação a esta nova geração é que os estilos já estão definidos e portanto há um público que se identifica com este fadista,outro público com outro fadista - é claro que há fadistas que abrangem mais públicos, mas cada um tem uma personalidade tão firmada que não há necessidadede ciúme. Eu continuo a ir a casas de fados porque me faz falta estar com as outras fadistas.
Vocês dizem entre si coisas como "aquela nota que tu deste é sublime"? Ai, eu sim. Sou muito espontânea e se a pessoa me faz sentir algo digo logo.
Como é que uma tímida é espontânea? Não sei, não faço ideia. Que sou tímida, sou. Extremamente. Aliás, é um dos meus grandes defeitos, porque aliado a isso vem muita coisa, a timidez impede-mede fazer muita coisa. Crio fobias.
Então? Tenho muitas fobias, em particular a sítios com muita gente. Depois tenho outras pequeninas, mas que não me apetecia nada contar. [Depois conta, mas pede para não publicar.]
Com as suas fobias e receios, a andar em digressão num autocarro dia após dia, a ter de cantar a mesma canção todas as noites, nunca tem vontade de mandartudo às malvas? Não. Porque apesar de ser tímida acho que sou muito forte. Sempre que vou pela primeira vez a um país estou preparada para o pior, porque não sei que públicoé que vou ter. Mas também até agora não tive experiências desagradáveis e tenho regressado aos sítios onde toco pela primeira vez, o que quer dizer queas coisas correm bem.
Por mais bem que se cante bem, é preciso uma estrutura por trás para chegar às pessoas? Sim, cada vez mais. Precisamos de exposição porque as pessoas só se identificam com o que ouvem - e para nos ouvirem é preciso todo um trabalho de marketingà volta de um cantor.
Os portugueses estão a perder a vergonha de vender o seu produto? De assumir que querem vencer e prepararem-se para isso? Claro. Isso sente-se nesta nova geração, é menos preconceituosa, muito mais aberta. É uma evolução natural que chegou também ao fado. Mas há coisas quenão mudam: desde o início que me disseram que o fado se cantava com um xaile e hoje eu não consigo cantar sem xaile. O xaile significa protecção e de factosinto-me aconchegada com o xaile, se cantar sem xaile, não sei onde pôr as mãos.
Além da poesia, de que diz gostar, o que lê? Gosto de histórias um bocadinho trágicas, por acaso. O livro que acabei de ler é o "Werther", do Goethe. Gosto muito desse tipo de livros. Não sou obrigatoriamentede romances, vou à procura de algo que me desperte interesse num momento da minha vida.
O que quer dizer que este é um momento de tragédia amorosa? Se calhar [risos].
Com todo esse lado emocional, é mulher para pensar muito sobre cada pormenor da vida? Eu gosto de pensar sobre as coisas - e passo muito tempo a fazê-lo. Considero-me uma pessoa coerente naquilo que acredito mas não sou uma pessoa de ideiasfixas.
Portanto é daquelas pessoas a quem dizem: "Tu pensas de mais." É isso mesmo. Estou sempre às voltas. Às vezes apetecia-me ter aqui um botãozinho e desligar.
Para não ter insónias. Também tenho, sim. Depende das alturas, mas também tenho.
Falemos de outra coisa: politicamente situa-se mais à esquerda ou à direita? Mais à esquerda.
Era capaz de fazer declarações políticas, se isso pusesse em causa a sua carreira? Toda a minha atitude, mesmo no meu dia-a-dia, é de nunca me manifestar muito sobre certas coisas. Estou aqui para fazer o que tenho a fazer, para seguiro meu caminho. Até agora sempre disse que não a convites partidários.
Como é que surgiu a digressão que fez nos Estados Unidos da América? Eu fui uma vez, a convite do Jorge Fernando, cantei dois fados e no final o director do Instituto World Music veio dizer-me: "Um dia vou trazê-la aqui."Qual foi o meu espanto quando, ao chegar lá, descobrir que ia tocar no Carneggie Hall, e estava esgotado. Era um concerto só meu, havia imensos cartazes,foi uma experiência inesquecível. Este ano voltei lá e foi uma digressão fantástica: comecei em Nova Iorque, com as salas todas esgotadas. Logo no primeiroconcerto tive uma crítica no "New York Times" que me fez sentir muito bem. Cheguei a Los Angeles e fiz um "show" em rádio e por causa desse programa enchio espectáculo em Los Angeles. Tudo isto me vai dando mais confiança, vai-me ajudando a dedicar-me por completo à minha carreira.
Põe tudo de parte para cantar? É isso que tenho feito, mas neste momento estou a tentar ver se encontro um equilíbrio e se arranjo vida pessoal.
Tendo tocado em tanto sítio, alguma vez lhe aconteceu pensar: "Gostava de morar nesta cidade"? Aconteceu-me com várias. Bem, neste momento era incapaz de viver fora de Portugal. Mas, para passar umas boas temporadas, há vários sítios. Dou-me muitobem na América, gosto do povo, são muito descontraídos, não são preconceituosos, falam muito. Gosto muito de Barcelona e de Paris, aí não me importavade ficar lá uns meses. A minha preocupação quando vou a algum sítio é tentar perceber a cultura local e enturmar-me, imaginar como seria viver nessa cultura.Quando vou para outro país, não vou à procura da minha comida. Quando fui à China fui aos templos, fiz aqueles rituais todos. A experiência de ir à Chinamarcou-me imenso pela diferença de culturas. Fui do norte ao sul, Pequim, Xangai, Hong Kong, Ankara.
Em relação à crítica no "New York Times": isso tocou-a? Muito. Fiquei feliz. Às vezes as pessoas pensam que nestas digressões andamos a passear e conhecer tudo, mas não: é intensivo, com muito trabalho, as viagenssão muito longas e depois do avião ainda temos de andar muito de carro e de manhã temos entrevistas, à tarde teste de som, à noite concerto, e depois segue-separa outra cidade. É uma entrega total e estas críticas servem para nos acarinhar.
Nessa crítica realçavam o facto de cantar sem microfone, o que faz muitas vezes. Porquê? Para mostrar um pouco o que se faz nas casas de fado. Era incapaz de fazer uma digressão inteira sem microfone, mas se pudesse eu fazia, porque prefiroouvir a minha voz ao natural, em vez de através de um microfone ou um monitor de som. Não me consigo adaptar, não consigo ouvir a música só nos meus ouvidos,tenho de a ouvir a bater no meu corpo todo.
Os seus pais leram a crítica? Eles viram no Telejornal e depois na Internet. Eles têm orgulho. O meu pai tocava viola, cantava, tinha um grupo antes de se casar com a minha mãe, crescia ouvir os meus pais a cantar, desde miúda que ia com eles ao fim-de-semana cantar com os amigos.
Tem irmãos? Um irmão, dois anos mais velho. Também tem muito orgulho da minha carreira.
Quando vai em digressão o namorado fica muito ciumento? Sim, por isso é que é difícil ter-se um namorado com esta carreira, porque não entendem.
E as histórias de as fadistas apaixonarem-se pelos guitarristas, são verdadeiras? Acho que é fácil isso acontecer, porque a partir do momento em que só se vive para a profissão e só se convive com aquelas pessoas eu acho que é fácil.E têm a mesma linguagem.
Quando chega a casa de uma digressão e não tem nada marcado na agenda, como é? Só quero dormir, porque há um cansaço... Mas sem agenda marcada às vezes há um vazio. É engraçado porque eu estou sempre a desejar ter descanso, mas depoisquando o tenho sinto-me como peixe fora de água. Entro um bocadinho em pânico. E aí só há os amigos e a família. Sou muito agarrada à família, aos meuspais, ao meu irmão, à minha sobrinha.
Tem uma sobrinha... Com a vida que tem, gostava de ter filhos? Sim. Muitos [risos.]. Dois. Gostava muito, não agora, mas gostava muito. Numa casa com quintal, para eles terem a liberdade de andar na terra, porque essafoi a minha infância. E fora de Lisboa. Com muito verde.
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